Trecho do livro "Poderes De Uma Sem-Teto

 


Deslizamos, eu e Raul, na poça d´água que o chão tinha se tornado e chegamos encharcados a um dos ônibus. Era o dele! Inocente, ou sei lá qual outro nome que lhe tinham dado, subia as escadas do veículo. Se ele ia embora da Cidade das Músicas eu também iria!

Nesse momento entendi porque estávamos nós, os moradores em situação de rua, sendo expulsos da rodoviária. Vi uma faixa em que estava escrito que a Cidade das Músicas dava as boas-vindas ao congresso de turismo musical mundial. Eu era uma das notas que desafinava nesse encontro de ilustres de todas as partes. Ser cantora miserável e, ainda por cima, das ruas não me qualificava para evento de tal porte. Tomei consciência dessa justificativa para nos apagarem do ambiente quando já me encontrava, rindo, gargalhando mesmo, dentro do bagageiro do ônibus.

— Ninguém manda a gente embora de lugar nenhum. Certo, Raul? Se a gente sai é porque a gente quer.

Raul lambeu as minhas mãos, num claro sinal de concordância. Um ditado dizia que alegria de pobre dura pouco. No meu caso, durava nada. A pouca luz que existia naquele dia foi se extinguindo, extinguindo, até o meu cachorro desatar a latir. Ele não fez por mal. Nunca gostou de ficar trancado em canto nenhum e ao ver uma porta nos fechando, junto com um monte de malas, rasgou em pedaços a sua coragem de cão.

Rasgou mais ou menos, Raul disfarçou seu medo avançando no Homem da Rodoviária responsável por trancar os bagageiros. Nhac! Deu uma mordida num dos braços daquele carcereiro de sua liberdade. O sujeito deu um berro daqueles e lá vieram os homens que realmente eu temia.

Os policiais da van que, em ocasiões importantes, nos caçavam para liberar as ruas das nódoas da sociedade. Nós, os vulneráveis tornados impotentes, seríamos mais uma vez carregados para algum abrigo bem, bem, bem longe.

Quem sabe assim esqueceríamos o caminho de volta, aposto que era nessa possibilidade que eles jogavam as suas fichas. Portanto, ao ver um dos homens da van - com crachá de assistência social -, enfiar a cara no bagageiro, fiz o que sempre fazia. Corri. Até porque não deixaria que me levassem para destino distante do de meu filho. Precisava saber para onde ele estava indo. Olhei para trás e li Cidades dos Bichos no vidro dianteiro do ônibus. A parada para fazer essa leitura permitiu que o homem da van me pegasse.


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