Trecho do livro "Dedo Em Riste, Verso Em Prosa!"

 




Pessoal, eu peguei este Conto da Coletânea de "Dedo Em Riste, Verso Em Prosa!" para vocês terem um gostinho deste livro maravilhoso:

"NAS RUAS, OS SENTIMENTOS ESTÃO MISTURADOS AOS PERFUMES 

Quando eu lecionava língua portuguesa para os alunos do primeiro ano do ensino médio tentei despertar neles logo de cara algum sentimento que os fizesse lembrar de mim: raiva, ódio, alegria, pena. Qualquer que fosse. Decidi apresentá-los à poesia haikai. 

Levei várias amostras, algumas brasileiras bem legais onde destacava as do Leminski. Aos cinco minutos do primeiro tempo, eu já pensava em acenar pro técnico e pedir substituição. Mas não havia ninguém no banco nem pra se aquecer. Enquanto agonizava, via se desenrolar em câmera lenta pelo menos uns malditos cinquenta minutos pela frente. Minhas vinganças sempre foram cruéis, geralmente proporcionais ao desprezo da classe. E naquele primeiro dia, primeira aula, retorno das férias de fim de ano, carnaval se aproximando, o desinteresse deles era inversamente proporcional à vontade de assistir aula. 

Dez minutos depois, acabei dando de ombros, fiz beicinho e resolvi aplicar a pena do dia: oficina de poesia haikai. Cada aluno deveria trazer uma poesia pronta na próxima aula e deveria começar a produção textual imediatamente. Em meio ao rompante estrondo estrepitoso subsequente à letargia que sempre precede uma atividade de classe, eu tentava explicar as regras, direitos e deveres dos condenados. Em vão, obviamente. Meus argumentos se esvaíam em meio ao bate-boca, assovios, vaias, peidos e mais algumas manifestações típicas da idade púbere. Meu deleite só aumentava em decorrência da crescente insatisfação da massa ignota de boas maneiras e civilidade que aos poucos foi se acalmando, acalmando até que se deu por vencido. 

Aos vinte minutos, estavam todos rabiscando algo nos cadernos manchados. Do alto do meu trono de algoz impiedoso, eu fitava aquelas cabeças. E sorria internamente com a pluralidade das reações daquela classe. Línguas de fora, mãos na cabeça, olhares atônitos, olhares perdidos, bocas mascando, bocas mordendo, dedos batucando, pezinhos balançando, enfim, as manifestações eram incontáveis. Alguns levaram a sério e realmente estavam tentando gastar alguma energia mental naquilo, mas uma boa parte estava apenas lançando um olhar apático na imensidão de uma folha branca que estava prestes a engoli-los. Rabiscavam e fingiam estar rabiscando algo de fato. Ver isso só melhorava meu humor. O motivo eu não sei. Talvez aquele resquício de crueldade que carregamos nos genes explicaria o fato. Sorrindo, anunciei que restavam apenas dez minutos pra aula acabar. 

Antes de concatenar mais alguma ideia sórdida ou levantar-me para fazer uma última inspeção nos trabalhos, um garotinho veio até mim. Era mirrado, ruivinho, tímido. Muito tímido. O pavor estampado no seu rosto evanescia enquanto tentava deixá-lo a vontade e chamá-lo por um nome, que com certeza eu não lembrava, o garoto apontou a folha em branco e disse que não sabia o que era uma poesia. 

Dentre as muitas manifestações já presenciadas por mim naquela e noutras classes e ocasiões, senti uma pontada de culpa, de raiva, de impotência, de pena, de desprezo por mim mesmo e por toda a humanidade. Qual o próximo passo da derrocada social? Passarmos todos a agir como arremedos de personagens das obras do Camus? Instantes depois de respirar fundo, me recompor, toquei levemente o ombro do garoto tentando encorajá-lo e por meio de exemplos e do meu conhecimento no assunto, expus lentamente uma breve ideia do que era poesia. Aqueles últimos minutos de aula foram um dos mais pesarosos da minha vida. 

Enquanto observava o garotinho se afastar rumo a seu assento, sentar-se e olhar para um papel em branco de maneira inconsolável, senti uma espécie de desilusão. Uma pequenez inexplicável. Como se estivesse de mãos atadas enquanto afundava num poço de areia movediça. Despedi-me da classe, e parti cabisbaixo rumo à minha residência. Fazia os mesmos velhos e tristes planos para aquele fim de tarde: Uma bebida, um livro, um disco, um lanche e minha cama. Receava ter pesadelos ao dormir e acordar num mundo onde todos seriam iguais àquele garotinho ruivo e tímido e que não sabia o que era poesia.

II 

Os dias passaram e minha alma corrompida já voltara a ser lépida quando chegou a tão temida “próxima aula”. Sentei-me no meu trono enquanto a turma, aos poucos, ia tomando um ar solene de prestação de contas. Levantei-me em seguida, e de assento em assento, recebia as produções textuais enquanto olhava nos olhos de cada um que me entregava seu poema haikai. 

Alguns casos omissos à parte, a maioria da classe apresentou algo. Sentei-me e fui passando a vista nos trabalhos. Chamava-me a atenção alguns fatos pitorescos na obra dos garotos, tais como trechos de letras do Caetano, exemplos tirados de algum livro, exemplos tirados da própria aula anterior e uma ou outra produção que me causava reações que variavam do riso ao engulho. Mas chamou-me a atenção um textinho que se encaixava bem no conceito do haikai. Levantei-me com o papel na mão e li o nome do aluno. Pedi que se apresentasse à frente. 

Para minha surpresa, o garotinho ruivo levantou-se com o pavor mais uma vez estampado no rosto. Enquanto dirigia-se à frente, pensei que ele fosse estourar num choro esganiçado a qualquer momento. Olhei para ele. Pus a mão em seu ombro e proclamei pra turma. Aquele garotinho ruivo havia feito o melhor poema haikai que um aluno meu fizera até hoje. Logo senti os seus ombros contraídos relaxarem-se. 

Olhei para ele e percebi um olhar misto de satisfação e orgulho. Um sorriso sutil teimava em querer se apossar dos seus lábios. Perguntei como ele havia conseguido aquela proeza. Seus colegas tinham que aprender o método. A resposta foi surpreendente. 

Para a surpresa da turma atônita, ele disse que ao sair da escola, parou na rua, fechou os olhos, respirou fundo e apenas sentiu. Quando chegou em casa escreveu seus versos: As ruas, os cheiros perfume, sentido Sentimentos perfumados Eu fui o primeiro a aplaudir. A turma me acompanhou com assovios, urros, berros, num festejar convulso que dessa vez não denotava desprezo, mas sim, alegria de viver. Alegria da descoberta. 

Ali, naquela classe, fechei meus olhos e também senti que assim como nas ruas, os sentimentos estão misturados aos perfumes. Enquanto ríamos e fazíamos nossa baderna, percebi de repente o garotinho ruivo explodir num choro de alegria e emoção enquanto me abraçava a barriga. Pus a mão em sua cabeça e o consolei, enquanto fechava os olhos e deixava verter uma lágrima de esperança. Naquele dia, concluí que enquanto existisse o belo, enquanto existisse algo a ser despertado nos mais jovens, eu iria continuar tentando."


Querem mais? Então adquira o livro aqui:

https://www.amazon.com/Dedo-riste-verso-prosa-Portuguese-ebook/dp/B0CLL64DCZ










#cristudoficial #dedoemristeversoemprosa #israeldeoliveiracosta #livrodigital #coletanea #contos #reflexoeshumanas #dicadeleitura #dicaliteraria 


 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Entrevista com o Autor Leonardo Bonomini

Entrevista com o Autor Israel de Oliveira Costa

Já leu "Mãe, Virei Best-Seller!" da Autora Sandra Alves?