Trecho do livro "A Volta do Justiceiro"
"Da
janela do quarto de Maria dava para avistar toda a extensão da serra. É certo
que a serra ficava muito além da fazenda, depois das quadras de arroz e do
campo onde o gado pastava mansamente. A noite há muito já viera cobrir a ter-ra
com seu manto e as luzinhas faiscantes das estrelas bri-lhavam no firmamento.
Ela estava admirando o céu todo estrelado e a lua cheia que parecia o sol
brilhando à noite. Apesar do adiantado da hora, não havia relógio na casa, mas
com certeza já passava das 22h, dava para ver toda a extensão do ruado como se
fosse dia, tão clara estava a noite. Maria ficava a admirar o céu, simplesmente
estava absorta, presa em um devaneio mais lindo até que o campo onde vivia. Os
pés de ipê estavam floridos e os mais lindos eram os ipês roxos, que até
combinavam com a época que estava vivendo. A igreja do vilarejo já tinha
coberto todos os santos com mantos roxos, sendo que a única imagem que não
havia sido coberta era o crucifixo que ornamentava o altar. Do resto, todos os
santos estavam ocultos pelo manto delicado, bordado pela dona Dita, uma das
diaconisas da igreja. Tudo bem, não era um título oficial, mas o trabalho que
ela exercia na capela, era...
Maria
notou alguma coisa diferente no horizonte... de repente, sem aviso prévio, uma
luz começou a serpentear pela serra, indo de um ponto ao outro, de leste a
oeste, de oeste a leste. Ia em linha reta, depois ziguezagueava, acompanhando o
formato da serra, então de repente subia para logo em seguida descer
rapidamente. A luz fazia voleios oferecendo um espetáculo no mínimo estranho
aos olhos de quem observava. Maria chamou seus pais para lhes mostrar a
estranha aparição no firmamento e vieram também seus irmãos. Quando viu o que
se passava ao longe, Zacarias, o pai de Maria falou para que a moça fechasse a
janela. Ela ficou surpresa, mas obedeceu. Afinal, seu pai entendia dos
mistérios daquela terra, pois se ele disse que era melhor fechar a janela,
bem... ela não iria discutir. Fechar a janela era mais fácil. Principalmente
porque era Lua cheia. Era tarde da noite. E era Quaresma...
Todos
se recolheram e foram tirar o sono dos justos, mesmo porque dali a algumas
horas teriam que se levantar para voltar à lida na roça. Estavam na época da
colheita do arroz e teriam muito trabalho pela frente. Zacarias era o leiteiro
da fazenda, seu trabalho consistia no manejo do gado. Mas seus filhos e a
esposa estavam trabalhando na roça, nas quadras de arroz.
Quando
estavam já no dique para iniciar o dia de trabalho, Maria mencionou para sua
amiga Graça sobre a luz que vira serpenteando pela serra. Sua amiga se
persignou, como seu pai fizera na noite passada. Maria perguntou o porquê do
ato, e sua amiga respondeu que o que ela avistara era um boitatá. E que ainda
bem que o bicho estava longe, pois se estivesse próximo da casa de Maria, com
certeza ela não estaria ali contando sobre seu avistamento. Maria fez uma cara
de descrença... um boitatá? Ela já ouvira falar sobre isso, mas nunca pensou em
ver um. Afinal, quem é que poderia imaginar que um desses bichos estaria
rondando por aquelas bandas? E quem seria louco o bastante para desafiar as
leis divinas e ser castigado assim em vida? Afinal, um boitatá era um casal de
compadres... e quem, dentre as pessoas da comunidade teria coragem de cometer
um pecado dessa magnitude? Sim, pois não era apenas um adultério o pecado
cometido... era um adultério de duas pessoas que tinham uma ligação mística
muito forte. Afinal, uma delas batizara o filho da outra.... e isso, Maria
sabia... era um pecado sem perdão de Deus..."
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