Trecho do livro "A Fenda Da Romã - Ofício De Trevas"
“Esmirna
aumentou o volume do som e foi até um quarto nos fundos buscar o saco de
plástico com os ossos. O Adágio de Albinoni se espalhou pelo pátio e se
infiltrou nos redemoinhos de folhas e de memórias. Os instrumentos, no piso de
mármore perto do algibe, aguardavam, com certeza, as mãos de uma escultora, com
raspadeira, goiva, cinzel e lixas.
A mulher
chegou com o saco dos ossos e se sentou no chão perto dos instrumentos. O
Adágio embalava seus pensamentos dispersos, não havia melancolia nem saudade,
nem tristeza, nem amor, nem ódio. Sentada com as pernas cruzadas como um buda,
encontrava-se plenamente isenta de dissabores ou desatinos. Sabia-se tal qual
uma sacerdotisa de longas vestes cerimoniais a oficiar o ritual da limpeza de
sua própria alma. Abstraída, percorria o pátio com o olhar e vislumbrava o
brilho das marombas dos chapéus das antigas senhoras daqueles domínios.
Avós,
bisavós, tias-avós rondavam e espiavam, horrorizadas e plenas de fascínio, pela
ousadia de Esmirna. Da balaustrada do terraço, Erínia observava os movimentos
suaves e precisos das mãos de Esmirna, imbuídas da tarefa de raspar e limpar os
ossos. Erínia permanecia quieta e silenciosa, pois sabia o quanto de íntimo e
privado significava a tarefa. Ninguém poderia compartilhar esse processo de
depuração, esse ofício de trevas ao qual se submetia Esmirna com imenso zelo,
sem nenhuma compaixão por si ou pelos ossos, sem nenhuma fé, nenhum propósito a
não ser assepsiar, expurgar o veneno das culpas, dos pecados e dos deuses
herdados.
O pátio
estava mais denso de sombras e sussurros. O Adágio perpassava por entre os
vultos indistintos, revoluteava por entre bengalas de cabos de marfim e prata…
Seria tio Elifas? Aquele de colete e casaca seria o avô Horácio? A desaprovação
dos mortos não inquietava Esmirna. As tíbias raspadas e lixadas estavam
prontas; depois, ela esfregaria uma flanela para que se parecessem com as
teclas do piano de tia Idalina — afinadas, polidas com esmero e para sempre
mudas. Passava a raspadeira num fêmur, então os resquícios de carne se desprendiam
e se arrastavam com o vento, as folhas e o Adágio.
O
crânio... esse ela deixaria para o fim. Olhou distraidamente para as omoplatas
e se lembrou de que eram usadas como enxadas pelos primitivos. Agora eram
muitos... incontáveis. Formavam um círculo em torno de Esmirna e do algibe.
Alguns ela se lembrava dos rostos nos velhos álbuns vindos da Espanha; a
maioria lhe era desconhecida.
Havia
anciãos, moços, crianças… lânguidas meninas de tranças e laçarotes de organdi.
Os cheiros espessos de água de rosas, alfazema e cânfora eram mesclados com o
odor de almas torturadas por pecados insondáveis, remorsos imemoriais e amores
vestidos de ódio. Esmirna sorria.
Quase
todos os ossos já estavam prontos; em pouco tempo, ela daria o trabalho por
concluído, então não seriam sequer suscetíveis a vapores perfumados ou fétidos.
Ao exumar os restos de sua mãe com o propósito de limpá-los meticulosamente,
ela se eximia de resgatar a memória dos antepassados, a mórbida memória das
células herdadas para a danação eterna. Ela continuava a sorrir para todos. O
desapontamento dos rostos lívidos e ferozes não a constrangia. Se necessário
fosse, ela lavaria os próprios ossos.”
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